|  | Ó cidade, cidade,
      que transbordas De vícios, de paixões e de amarguras!
 Tu lá estás, na tua pompa envolta,
 Soberba prostituta, alardeando
 Os teatros, e os paços, e o ruído
 Das carroças dos nobres recamadas
 De ouro e prata, e os prazeres de uma vida
 Tempestuosa, e o tropear contínuo
 Dos férvidos ginetes, que alevantam
 O pó e o lodo cortesão das praças;
 E as gerações corruptas de teus filhos
 Lá se revolvem, qual montão de vermes
 Sobre um cadáver pútrido! Cidade,
 Branqueado sepulcro, que misturas
 A opulência, a miséria, a dor e o gozo,
 Honra e infâmia, pudor e impudícia
 Céu e inferno, que és tu? Escárnio ou glória
 Da humanidade? O que o souber que o diga!
 
 Bem negra avulta aqui, na paz do vale,
 A imagem desse povo, que reflui
 Das moradas à rua, à praça, ao templo;
 Que ri, e chora, folga, e geme, e morre,
 Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;
 Absurdo misto de baixeza extrema
 E de extrema ousadia; vulto enorme,
 Ora aos pés de um vil déspota estendido,
 Ora surgindo, e arremessando ao nada
 As memórias dos séculos que foram,
 E depois sobre o nada adormecendo.
 
 Vê-lo, rico de opróbrio, ir assentar-se
 Em joelhos nos átrios dos tiranos.
 Onde, entre o lampejar de armas de servos,
 O servo popular adora um tigre ?
 Esse tigre é o ídolo do povo!
 Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe
 O férreo ceptro: ide folgar em roda
 De cadafalsos, povoados sempre
 De vítimas ilustres, cujo arranco
 Seja como harmonia, que adormente
 Em seus terrores o senhor das turbas.
 Passai depois. Se a mão da Providência
 Esmigalhou a fronte à tirania;
 Se o déspota caiu, e está deitado
 No lodaçal da sua infâmia, a turba
 Lá vai buscar o ceptro dos terrores,
 E diz: «É meu»; e assenta-se na praça,
 E envolta em roto manto. e julga, e reina.
 Se um ímpio, então, na afogueada boca
 De vulcão popular sacode um facho,
 Eis o incêndio que muge, e a lava sobe,
 E referve, e trasborda, e se derrama
 Pelas ruas além: clamor retumba
 De anarquia impudente, e o brilho de armas
 Pelo escuro transluz, como um presságio
 De assolação, e se amontoam vagas
 Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;
 Desse vulgo, que ao som de infernais hinos
 Cava fundo da Pátria a sepultura,
 Onde, abraçando a glória do passado
 E do futuro a última esperança,
 As esmaga consigo, e ri morrendo.
 
 Tal és, cidade, licenciosa ou serva!
 Outros louvem teus paços sumptuosos,
 Teu ouro, teu poder: sentina impura
 De corrupções, teus não serão meus hinos!
 
        Δ D. PedroPela encosta do Líbano, rugindo, O noto furioso
 Passou um dia, arremessando à terra
 O cedro mais frondoso;
 Assim te sacudiu da morte o sopro
 Do carro da vitória,
 Quando, ébrio de esperanças, tu sorrias,
 Filho caro da glória.
 Se, depois de procela em mar de escolhos,
 A combatida nave
 Vê terra e vento abranda, o porto aferra,
 Com júbilo suave.
 Também tu demandaste o Céu sereno,
 Depois de uma árdua lida:
 Deus te chamou: o prémio recebeste
 Dos méritos da vida.
 Que é esta? Um ermo de espinhais cortado,
 Donde foge o prazer:
 Para o justo ela existe além da campa:
 Teme o ímpio o morrer.
 Plante-se a acácia, o símbolo do livre,
 Junto às cinzas do forte:
 Ele foi rei - e combateu tiranos -
 Chorai, chorai-lhe a morte!
 Regada pelas lágrimas de um povo,
 A planta crescerá;
 E à sombra dela a fronte do guerreiro
 Plácida pousará.
 Essa fronte das balas respeitada,
 Agora a traga o pó:
 Do valente, do bom, do nosso Amigo
 Restam memórias só;
 Mas estas, entre nós, com a saudade
 Perenes viverão,
 Enquanto, à voz de pátria e liberdade.
 Ansiar um coração.
 Nas orgias de Roma, a prostituta,
 Folga, vil opressor:
 Folga com os hipócritas do Tibre;
 Morreu teu vencedor.
 Envolto em maldições, em susto, em crimes
 Fugiste, desgraçado:
 Ele, subindo ao Céu, ouviu só gueixas,
 E um choro não comprado:
 Encostado na borda do sepulcro,
 O olhar atrás volveu,
 As suas obras contemplou passadas,
 E em paz adormeceu:
 Os teus dias também serão contados,
 Covarde foragido;
 Mas será de remorso tardo e inútil
 Teu último gemido:
 Do passamento o cálix lhe adoçaram
 Uma filha, urna esposa:
 Quem, tigre cru, te cercará o leito,
 Nessa hora pavorosa?
 Deus, tu és bom: e o virtuoso em breve
 Chamas ao gozo eterno,
 E o ímpio deixas saciar de crimes,
 Para o sumir no Inferno?
 Alma gentil, que assim nos hás deixado,
 Entregues à alta dor,
 Anjo das preces nos serás, perante
 O trono do Senhor:
 E quando, cá na Terra, o poderoso
 As Leis aos pés calcar,
 Junto do teu sepulcro irá o opresso
 Seus males deplorar:
 Assim, no Oriente, de Albuquerque às cinzas
 O desvalido indiano
 Mais de urna vez foi demandar vingança
 De um déspota inumano.
 Mas quem ousará à pátria tua e nossa
 Curvar nobre cerviz?
 Quem roubará ao lusitano povo
 Um povo ser feliz?
 Ninguém! Por tua glória os teus soldados
 Juram livres viver.
 Ai do tirano que primeiro ousasse
 Do voto escarnecer!
 Nesse abraço final, que nos legaste,
 Legaste o génio teu:
 Aqui - no coração - nós o guardámos;
 Teu génio não morreu.
 Jaz em paz: essa terra, que te esconde,
 O monstro abominado
 Só pisará ao baquear sobre ela
 Teu último soldado.
 Eu também combati: nus pátrias lidesTambém colhi um louro:
 O prantear o Companheiro extinto
 Não me será desdouro.
 Para o Sol do Oriente outros se voltem,
 Calor e luz buscando:
 Que eu pelo belo Sol, que jaz no ocaso,
 Cá ficarei chorando.
 
    
        Δ 
    
    A arrábida
 I
 
    Salve, ó vale do sul, saudoso e belo!Salve, ó pátria da paz, deserto santo,
 Onde não ruge a grande voz das turbas!
 Solo sagrado a Deus, pudesse ao mundo
 O poeta fugir, cingir-se ao ermo,
 Qual ao freixo robusto a frágil hera,
 E a romagem do túmulo cumprindo,
 Só conhecer, ao despertar na morte,
 Essa vida sem mal, sem dor, sem termo,
 Que íntima voz contínuo nos promete
 No trânsito chamado o viver do homem.
 
 II
 
 Suspira o vento no álamo frondoso;
 As aves soltam matutino canto;
 Late o lebréu na encosta, e o mar sussurra
 Dos alcantis na base carcomida:
 Eis o ruído de ermo! Ao longe o negro,
 Insondado oceano, e o céu cerúleo
 Se abraçam no horizonte. Imensa imagem
 Da eternidade e do infinito, salve!
 
 III
 
 Oh, como surge majestosa e bela,
 Com viço da criação, a natureza
 No solitário vale! E o leve insecto
 E a relva e os matos e a fragrância pura
 Das boninas da encosta estão contando
 Mil saudades de Deus, que os há lançado,
 Com mão profusa, no regaço ameno
 Da solidão, onde se esconde o justo.
 
 E lá campeiam no alto das montanhas
 Os escalvados píncaros, severos,
 Quais guardadores de um lugar que é santo;
 Atalaias que ao longe o mundo observam,
 Cerrando até o mar o último abrigo
 Da crença viva, da oração piedosa,
 Que se ergue a Deus de lábios inocentes.
 
 Sobre esta cena o sol verte em torrentes
 Da manhã o fulgor; a brisa esvai-se
 Pelos rosmaninhais, e inclina os topos
 Do zimbro e alecrineiro, ao rés sentados
 Desses tronos de fragas sobrepostas,
 Que alpestres matas de medronhos vestem;
 O rocio da noite à branca rosa
 No seio derramou frescor suave,
 E inda existência lhe dará um dia.
 
 Formoso ermo do sul, outra vez, salve!
 
 IV
 
 Negro, estéril rochedo, que contrastas,
 Na mudez tua, o plácido sussurro
 Das árvores do vale, que vicejam
 Ricas d'encantos, coa estação propícia;
 Suavíssimo aroma, que, manando
 Das variegadas flores, derramadas
 Na sinuosa encosta da montanha,
 Do altar da solidão subindo aos ores,
 És digno incenso ao Criador erguido;
 Livres aves, filhas da espessura,
 Que só teceis da natureza as hinos,
 O que crê, o cantor, que foi lançado,
 Estranho no mundo, no bulício dele,
 Vem saudar-vos, sentir um gozo puro,
 Dus homens esquecer paixões e opróbio,
 E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,
 O Sol, e uma só vez puro saudar-lha.
 
 Convosco eu sou maior; mais longe a mente
 dos céus se imerge livre,
 E se desprende de mortais memórias
 Na solidão solene, onde, incessante,
 Em cada pedra, em cada flor se escuta
 Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa
 A dextra sua em multiforme quadro.
 
 V
 
 Escalvado penedo, que repousas
 Lá no cimo do monte, ameaçando
 Ruína ao roble secular da encosta,
 Que sonolento move a coma estiva
 Ante a aragem do mar, foste formoso;
 Já te cobriram cespedes virentes;
 Mus o tempo voou, e nele envolta
 A formosura tua. Despedidos
 Das negras nuvens o chuveiro espesso
 E o granizo, que o solo fustigando
 Tritura u tenra lanceolada relva,
 Durante largos séculos, no Inverno,
 Dos vendavais no dorso a ti desceram.
 Qual amplexo brutal de ardos grosseiro,
 Que, maculando virginal pureza.
 Do pudor varre a auréola celeste,
 E deixa, em vez de um serafim m Terra,
 Queimada flor que devorou o raio.
 
 VI
 
 Caveira da montanha, ossada imensa,
 É tua campa o Céu: sepulcro o vale
 Um dia te será. Quando sentires
 Rugir com som medonho a Terra ao longe,
 Na expansão dos vulcões, e o mar, bramindo,
 Lançar à praia vagalhões cruzados;
 Tremer-te a larga base, e sacudir-te
 De sobre si, o fundo deste vale
 Te vai servir de túmulo; e os carvalhos
 Do mundo primogénitos, e os sobros,
 Arrastados por ti lá da colina,
 Contigo hão-de jazer. De novo a terra
 Te cobrirá o dorso sinuoso:
 Outra vez sobre ti nascendo os lírios,
 Do seu puro candor hão-de adornar-te;
 E tu, ora medonho e nu e triste,
 Ainda belo serás, vestido e alegre.
 
 VII
 
 Mais que o homem feliz! Quando eu no vale
 Dos túmulos cair; quando uma pedra
 Os ossos me esconder, se me for dada,
 Não mais reviverei; não mais meus olhos
 Verão, ao pôr-se, o Sol em dia estivo,
 Se em turbilhões de púrpura, que ondeiam
 Pelo extremo dos céus sobre o ocidente.
 Vai provar que um Deus há o estranhos povos
 E além das ondas trémulo sumir-se;
 Nem, quando, lá do cimo das montanhas,
 Com torrentes de luz inunda as veigas:
 Não mais verei o refulgir da Lua
 No irrequieto mar, na paz da noite,
 Por horas em que vela o criminoso,
 A quem íntima voz rouba o sossego.
 E em que o justo descansa, ou, solitário,
 Ergue ao Senhor um hino harmonioso.
 
 VIII
 
 Ontem, sentado num penhasco, e perto
 Dos águas, então quedas, do oceano,
 Eu também o louvei sem ser um justo:
 E meditei, e a mente extasiada
 Deixei correr pela amplidão das ondas.
 
 Como abraço materno era suave
 A aragem fresca do cair das trevas.
 Enquanto, envolta em glória, a clara Lua
 Sumia em seu fulgor milhões d'estrelas.
 
 Tudo calado estava: o mar somente
 As harmonias da criação soltava,
 Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto
 Se agitava, gemendo e murmurando.
 Ante o sopro de oeste: ali dos olhos
 O pranto me correu, sem que o sentisse.
 E aos pés de Deus se derramou minha alma.
 
 IX
 
 Oh, que viesse o que não crê, comigo,
 À vicejante Arrábida de noite,
 E se assentasse aqui sobre estas fragas,
 Escutando o sussurro incerto e triste
 Das movediças ramas, que povoa
 De saudade e de amor nocturna brisa;
 Que visse a lua, o espaço opresso de astros,
 E ouvisse o mar soando: – ele chorara,
 Qual eu chorei, as lágrimas do gozo,
 E, adorando o Senhor, detestaria
 De uma ciência vã seu vão orgulho.
 
 X
 
 É aqui neste vale, ao qual não chega
 Humana voz e o tumultuar das turbas,
 Onde o nada da vida sonda livre
 O coração, que busca ir abrigar-se
 No futuro, e debaixo do amplo manto
 Da piedade de Deus: aqui serena
 Vem a imagem da campa, como a imagem
 Da pátria ao desterrado; aqui, solene,
 Brada a montanha, memorando a morte.
 
 Essas penhas, que, lá no alto das serras
 Nuas, crestadas, solitárias dormem,
 Parecem imitar da sepultura
 O aspecto melancólico e o repouso
 Tão desejado do que em Deus confia.
 Bem semelhante à paz. que se há sentado
 Por séculos, ali, nas cordilheiras
 É o silêncio do adro, onde reúnem
 Os ciprestes e a Cruz, o Céu e a Terra.
 
 Como tu vens cercado de esperança,
 Para o inocente, ó plácido sepulcro!
 Junto das tuas bordas pavorosas
 O perverso recua horrorizado:
 Após si volve os olhos; na existência
 Deserto árido só descobre ao longe.
 Onde a virtude não deixou um trilho.
 
 Mas o justo, chegando à meta extrema,
 Que separa de nós a eternidade,
 Transpõe-na sem temor, e em Deus exulta..
 O infeliz e o feliz lá dormem ambos,
 Tranquilamente: e o trovador mesquinho,
 Que peregrino vagueou na Terra,
 Sem encontrar um coração ardente
 Que o entendesse, a pátria de seus sonhos,
 Ignota, por lá busca; e quando as eras
 Vierem junto às cinzas colocar-lhe
 Tardios louros, que escondera a inveja,
 Ele não erguerá a mão mirrada,
 Para os cingir na regelada fronte.
 Justiça, glória, amor, saudade, tudo,
 An pé da sepultura, é som perdido
 De harpa eólia esquecida em brenha ou selva:
 O despertar um pai, que saboreia
 Entre os bruços da morte o extremo sono,
 Já não é dado ao filial suspiro;
 Em vão o amante, ali, da amada sua
 De rosas sobre a c'roa debruçado,
 Rega de amargo pranto as murchas flores
 E a fria pedra: a pedra é sempre fria.
 E para sempre as flores se murcharam.
 
 XI
 
 Belo ermo!, eu hei-de amar-te enquanto esta alma,
 Aspirando o futuro além da vida
 E um hálito dos Céus, gemer atada
 À coluna do exílio, a que se chama
 Em língua vil e mentirosa o mundo.
 Eu hei-de amar-te, ó vale, como um filho
 Dos sonhos meus. A imagem do deserto
 Guardá-la-ei no coração, bem junto
 Com minha fé, meu único tesouro.
 
 Qual pomposo jardim de verme ilustre,
 Chamado rei ou nobre, há-de contigo
 Comparar-se, ó deserto? Aqui não cresce
 Em vaso de alabastro a flor cativa,
 Ou árvore educada por mão de homem,
 Que lhe diga: «És escrava», e erga um ferro
 E lhe decepe os troncos. Como é livre
 A vaga do oceano, é livre no ermo
 A bonina rasteira ou freixo altivo!
 Não lhes diz: «Nasce aqui, ou lá não cresças».
 Humana voz. Se baqueou o freixo,
 Deus o mandou: se a flor pendida murcha,
 É que o rocio não desceu de noite,
 E da vida o Senhor lhe nega a vida.
 
 Céu livre, Terra livre, e livre a mente,
 Paz íntima, e saudade, mas saudade
 Que não dói, que não mirra, e que consola,
 São as riquezas do ermo, onde sorriem
 Das procelas do mundo os que o deixaram.
 
 XII
 
 Ali naquela encosta, ontem de noite,
 Alvejava por entre os medronheiros
 Do solitário a habitação tranquila:
 E eu vagueei por lá. Patente estava
 O pobre albergue do eremita humilde,
 Onde jazia o filho da esperança
 Sob as asas de Deus, à luz dos astros,
 Em leito, duro sim, não de remorsos.
 Oh, com quanto sossego o bom do velho
 Dormia! A leve aragem lhe ondeava
 As raras cãs na fronte, onde se lia
 A bela história de passados anos.
 De alto choupo através passava um raio
 Da Lua – astro de paz, astro que chama
 Os olhos para o céu, e a Deus a mente -
 E em luz pálida as faces !he banhava:
 E talvez neste raio o Pai celeste
 Da pátria eterna, lhe enviava a imagem,
 Que o sorriso dus lábios lhe fugia,
 Como se um sonho de ventura e glória
 Na Terra de antemão o consolasse.
 E eu comparei o solitário obscuro
 Ao inquieto filho das cidades:
 Comparei o deserto silencioso
 Ao perpétuo ruído que sussurra
 Pelos palácios do abastado e nobre,
 Pelos paços dos reis; e condoí-me
 Do cortesão soberbo, que só cura
 De honras, haveres, glória, que se compram
 Com maldições e perenal remorso.
 Glória! A sua qual é? Pelas campinas,
 Cobertas de cadáveres, regadas
 De negro sangue, ele segou seus louros;
 Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva
 Ao som do choro da viúva e do órfão;
 Ou, dos sustos senhor, em seu delírio,
 Os homens, seu irmãos, flagela e oprime.
 Lá o filho do pó se julga um nume,
 Porque a Terra o adorou; o desgraçado
 Pensa, talvez, que o verme dos sepulcros
 Nunca se há-de chegar para tragá-lo
 Ao banquete da morte, imaginando
 Que uma lájea de mármore, que esconde
 O cadáver do grande, é mais durável
 Do que esse chão sem inscrição, sem nome.
 Por onde o opresso, o mísero, procura
 O repouso, e se atira aos pés do trono
 Do Omnipotente, a demandar justiça
 Contra os fortes do mundo, os seus tiranos.
 
 XIII
 
 Ó cidade, cidade, que transbordas
 De vícios, de paixões e de amarguras!
 Tu lá estás, na tua pompa envolta,
 Soberba prostituta, alardeando
 Os teatros, e os paços, e o ruído
 Das carroças dos nobres recamadas
 De ouro e prata, e os prazeres de uma vida
 Tempestuosa, e o tropear contínuo
 Dos férvidos ginetes, que alevantam
 O pó e o lodo cortesão das praças;
 E as gerações corruptas de teus filhos
 Lá se revolvem, qual montão de vermes
 Sobre um cadáver pútrido! Cidade,
 Branqueado sepulcro, que misturas
 A opulência, a miséria, a dor e o gozo,
 Honra e infâmia, pudor e impudícia
 Céu e inferno, que és tu? Escárnio ou glória
 Da humanidade? O que o souber que o diga!
 
 Bem negra avulta aqui, na paz do vale,
 A imagem desse povo, que reflui
 Das moradas à rua, à praça, ao templo;
 Que ri, e chora, folga, e geme, e morre,
 Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;
 Absurdo misto de baixeza extrema
 E de extrema ousadia; vulto enorme,
 Ora aos pés de um vil déspota estendido,
 Ora surgindo, e arremessando ao nada
 As memórias dos séculos que foram,
 E depois sobre o nada adormecendo.
 
 Vê-lo, rico de opróbrio, ir assentar-se
 Em joelhos nos átrios dos tiranos.
 Onde, entre o lampejar de armas de servos,
 O servo popular adora um tigre ?
 Esse tigre é o ídolo do povo!
 Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe
 O férreo ceptro: ide folgar em roda
 De cadafalsos, povoados sempre
 De vítimas ilustres, cujo arranco
 Seja como harmonia, que adormente
 Em seus terrores o senhor das turbas.
 Passai depois. Se a mão da Providência
 Esmigalhou a fronte à tirania;
 Se o déspota caiu, e está deitado
 No lodaçal da sua infâmia, a turba
 Lá vai buscar o ceptro dos terrores,
 E diz: «É meu»; e assenta-se na praça,
 E envolta em roto manto. e julga, e reina.
 Se um ímpio, então, na afogueada boca
 De vulcão popular sacode um facho,
 Eis o incêndio que muge, e a lava sobe,
 E referve, e trasborda, e se derrama
 Pelas ruas além: clamor retumba
 De anarquia impudente, e o brilho de armas
 Pelo escuro transluz, como um presságio
 De assolação, e se amontoam vagas
 Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;
 Desse vulgo, que ao som de infernais hinos
 Cava fundo da Pátria a sepultura,
 Onde, abraçando a glória do passado
 E do futuro a última esperança,
 As esmaga consigo, e ri morrendo.
 
 Tal és, cidade, licenciosa ou serva!
 Outros louvem teus paços sumptuosos,
 Teu ouro, teu poder: sentina impura
 De corrupções, teus não serão meus hinos!
 
 XIV
 
 Cantor da solidão, vim assentar-me
 Junto do verde céspede do vale,
 E a paz de Deus do mundo me consola.
 
 Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo,
 Um pobre conventinho. Homem piedoso
 O alevantou há séculos, passando,
 Como orvalho do céu, por este sítio,
 De virtudes depois tão rico e fértil.
 
 Como um pai de seus filhos rodeado,
 Pelos matos do outeiro o vão cercando
 Os tugúrios de humildes eremitas,
 Onde o cilício e a compunção apagam
 Da lembrança de Deus passados erros
 Do pecador, que reclinou a fronte
 Penitente no pó. O sacerdote
 Dos remorsos lhe ouviu as amarguras;
 E perdoou-lhe, e consolou-o em nome
 Do que expirando perdoava, o Justo,
 Que entre os humanos não achou piedade.
 
 XV
 
 Religião! do mísero conforto,
 Abrigo extremo de alma, que há mirrado
 O longo agonizar de uma saudade.
 Da desonra, do exílio, ou da injustiça,
 Tu consolas aquele, que ouve o Verbo.
 Que renovou o corrompido mundo,
 E que mil povos pouco a pouco ouviram.
 Nobre, plebeu, dominador, ou servo,
 O rico, o pobre, o valoroso, o fraco,
 Da desgraça no dia ajoelharam
 No limiar do solitário templo.
 Ao pé desse portal, que veste o musgo,
 Encontrou-os chorando o sacerdote,
 Que da serra descia à meia-noite,
 Pelo sino das preces convocado:
 Aí os viu ao despontar do dia,
 Sob os raios do Sol, ainda chorando,
 Passados meses, o burel grosseiro,
 O leito de cortiça, e a fervorosa
 E contínua oração foram cerrando
 Nos corações dos míseros as chagas,
 Que o mundo sabe abrir, mas que não cura.
 Aqui, depois, qual hálito suave.
 Da Primavera, lhes correu a vida,
 Até sumir-se no adro do convento,
 Debaixo de uma lájea tosca e humilde,
 Sem nome, nem palavra, que recorde
 O que a terra abrigou no sono extremo.
 
 Eremitério antigo, oh, se pudesses
 Dos anos que lá vão contar a história;
 Se ora, à voz do cantor, possível fosse
 Transudar desse chão, gelado e mudo,
 O mudo pranto, em noites dolorosas,
 Por náufragos do mundo derramado
 Sobre ele, e aos pés da Cruz!... Se vós pudésseis,
 Broncas pedras, falar, o que diríeis!
 
 Quantos nomes mimosos da ventura,
 Convertidos em fábula das gentes.
 Despertariam o eco das montanhas,
 Se aos negros troncos do sobreiro antigo
 Mandasse o Eterno sussurrar a história
 Dos que vieram desnudar-lhe o cepo,
 Para um leito formar, onde velassem
 Da mágoa, ou do remorso, as longas noites!
 Aqui veio, talvez, buscar asilo
 Um poderoso, outrora anjo da Terra,
 Despenhado nas trevas do infortúnio;
 Aqui gemeu, talvez, o amor traído,
 Ou pela morte convertido em cancro
 De infernal desespero; aqui soaram
 Do arrependido os últimos gemidos,
 Depois da vida derramada em gozos,
 Depois do gozo convertido em tédio.
 Mas quem foram? Nenhum, depondo em terra
 Vestidura mortal, deixou vestígios
 De seu breve passar. E isso que importa,
 Se Deus o viu; se as lágrimas do triste
 Ele contou, para as pagar com glória?
 
 XVI
 
 Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda
 Que serpeia do monte ao fundo vale,
 Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,
 Como um farol de vida em mar de escolhos:
 Ao cristão infeliz acolhe no ermo.
 E consolando-o, diz-lhe: «A pátria tua
 É lá no Céu: abraça-te comigo.»
 Junto dela esses homens, que passaram
 Acurvados na dor, as mãos ergueram
 Para o Deus, que perdoa, e que é conforto
 Dos que aos pés deste símbolo da esp'rança
 Vêm derramar seu coração aflito:
 É do deserto a história, a cruz e a campa;
 E sobre tudo o mais pousa o silêncio.
 
 XVII
 
 Feliz da Terra, os monges não maldigas;
 Do que em Deus confiou não escarneças:
 Folgando segue a trilha, que há juncado,
 Para teus pés, de flores a fortuna.
 E sobre a morta crença em paz descansa.
 Que mal te faz. Que gozo vai roubar-te
 O que ensanguenta os pés no tojo agreste,
 E sobre a fria pedra encosta a fronte?
 Que mal te faz uma oração erguida,
 Nas solidões, por voz sumida e frouxa,
 E que, subindo aos Céus, só Deus escuta?
 Oh, não insultes lágrimas alheias,
 E deixa a fé ao que não tem mais nada!...
 
 E se estes versos te contristam, rasga-os.
 Teus menestréis te venderão seus hinos,
 Nos banquetes opíparos, enquanto
 O negro pão repartirá comigo,
 Seu trovador, o pobre anacoreta,
 Que não te inveja as ditas, como as c'roas
 Do prazer ao cantor eu não invejo;
 Tristes coroas, sob as quais às vezes
 Está gravada uma inscrição d'infâmia.
 
    
        Δ |  |