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    Goa bela!  
    Olha os Gates (1) em chama!  
    Olha a crista revolta  
    que se inflama!  
    Andam tigres à solta  
    nos bosques de Bengala!  
    É a Índia que te fala!  
    É a Índia que te chama!  
    
    Olha os Gates floridos, Goa 
    bela!  
    Seus píncaros parecem mil canteiros  
    de corolas subtis, multicolores;  
    nos seus desfiladeiros,  
    a Água se transforma em mar de leite  
    e o leite em mar de Flores!  
    
    Eis a Manhã de Glória, que 
    desponta  
    num clarão!  
    Goa! Olha os Gates floridos!  
    Olha os reflexos da Aurora  
    da tua redenção!  
    
    Vês como, além, o areal 
    palpita  
    e as arequeiras  
    suas copas virentes entrelaçam  
    ao seu calor?  
    No jangál (1) já vê o wág (1) se não agita,  
    e, alacres, despertam capoeiras,  
    e mil casais se enlaçam  
    com amor...  
    É o fulgor  
    da tua manhã de Glória que os excita!  
    
    Ó Goa bela, ouve os Gates 
    cantando:  
    nos seus mihares  
    de ôllos (1) seculares  
    — imensas catedrais abobadadas —  
    acordam as ninhadas!  
    A brisa do Decão traz-nos, dos ninhos,  
    suas canções:  
    parecem luz a entrar aos bocadinhos  
    nos corações!  
    
    Olha os Gates, ó Goa, Goa bela!
     
    Vê como as verdes olas se espanejam  
    nos seus palmares;  
    e os bule-bules gárrulos festejam  
    a hora do resgate!  
    O coco, escrínio de oiro,  
    tingiu-se de mais loiro,  
    e nas searas das morodas (1)  
    se aloira mais o bate!(1)  
    
    Goa bela!  
    Eis o pólen da Vida  
    que Súria (1) vem verter nos teus jardins!  
    Abre à Vida o teu peito:  
    o seu beijo fecundo redimida,  
    a Natureza juncará teu leito  
    de mogarins (1) !...  
    
    O Mar, teu bardo antigo,  
    teu velho amante,  
    estorce-se em tuas praias suplicante,  
    esmolando carícias:  
    (blandícias  
    de traição...)  
    Mas não lhe volvas teu olhar amigo,  
    ó Goa bela!  
    O mar é um inimigo:  
    se te traz a monção,  
    também te traz procela  
    e já te trouxe a santa  
    Inquisição...  
    
    O Mar, teu velho amante?  
    Tola a paixão qu'inda por ele nutres!  
    pelos trilhos  
    do seu dorso gigante,  
    pombas de brancas asas,  
    (por dentro abutres  
    de goela hiante...)  
    vieram sobre ti banquetear-se  
    e te servirem fogo em vez de luz:  
    e mancharem teus lares  
    e queimarem teus filhos,  
    teus livros, teus tesourso, teus altares  
    frias, pálidas mãos alçando a Cruz!  
    
    E com os filhos queimados,  
    com os livros perecidos,  
    os altares destruídos  
    e os templos profanados,  
    os teus Deuses te deixaram,  
    os teus sábios morreram  
    as virtudes debandaram  
    e... os abolins (1) feneceram...  
    Hoje na tua vida  
    tudo é monotonia:  
    sem ciência nem cultura, sem génios nem poetas vegetas...  
    
    Pobre mina exaurida! 
     
    
    No ritmo da ataxia  
    a seiva produtiva  
    estancou em tuas veias...  
    E crês-te progressiva!  
    E pensas iludir essa melancolia  
    caiando de alvaiade as faces bronzeadas,  
    a fingir de .... europeias!  
    
    Mas ficam furta-cores...
     
    
    Águias ousadas  
    e inquietas,  
    condores  
    ansiosos de vida e de espaços,  
    teus filhos,  
    buscando novos trilhos  
    abandonam-te em triste debandada.  
    Uns encontram a Glória, outros a Morte:  
    eles, águias inquietas  
    na sua sede de vida e de espaços!  
    Mas tu, indiferente à sua sorte,  
    comes do ganho dos seus braços  
    e encostas-te às muletas  
    como uma velha trôpega e cansada!  
    
    Eis a lição,  
    «a exploração»,  
    que te legou a Europa, tua senhora:  
    ela explorou-te outrora,  
    tu exploras agora  
    os filhos do teu próprio coração!  
    Pobre Goa, tão pobre! Em que ignóbil carcaça  
    pôs a tua alma d'ouro, a hora da desgraça!  
    Teu cérebro esgotado  
    dormiu na inconsciência!  
    E, esquecido o passado,  
    interrupta a História,  
    bate em vão a alheias portas em busca da Ciência!  
    Vai em balde a estranhas terras à procura da Glória!  
    
    Ó Goa bela! Acorda!  
    Esquece-te e recorda!  
    
    Esquece os longos anos de 
    desdita,  
    de miséria infinita,  
    de revolta, de luto, de opressão!  
    Esquece a Inquisição,  
    e o Jesuíta  
    que te torceu a alma,  
    que te deixou por arma  
    a hipocrisia,  
    e cavou mil abismos penetrantes  
    (fé, costumes, língua, tradição...)  
    entre  
    os filhos do teu ventre.  
    Esquece-te das noites horrorosas  
    e trágicas, de incêndios crepitantes  
    em que, templo após templo,  
    campo após campo,  
    se consumia  
    o melhor das riquezas portentosas  
    que no teu seio havia.  
    
    Ó Goa bela, acorda!  
    Esquece-te e recorda!  
    
    Recorda a tua História!  
    Folheia o Livro de Ouro do Passado!  
    Volve às eras de glória  
    em que eras grande, em que eras moça e sábia,  
    em que os homens do Pérsico e do Tigre  
    te vinham ofertar corcéis da Arábia  
    e tu lhes davas sândalo e gengibre;  
    em que os teus cinco rios,  
    cantados  
    pelas puranas santas  
    lavavam os pecados  
    e eram visitados:  
    rios cuja água, bebida,  
    era uma fonte de amor, doçura e vida!  
    
    Esses tempos passaram,  
    estas glórias morreram,  
    essas árvores d'ouro feneceram,  
    e as águas sagradas,  
    abandonadas, 
      
    
    se profanaram...  
    Jamais um batelão  
    de quilha donairosa  
    flutuou triufante à tona do Zuari (1);  
    e a flor da tradição  
    tremeu e, pressurosa  
    fugiu de ao pé de ti....  
    
    Outros povos, porém, outros 
    ares mais puros  
    e reinos mais seguros  
    guardaram com unção  
    o seu botão.  
    Hoje, desabrochada, as pétulas estrela  
    e estende para ti:  
    E sobre o gineceu — exulta ó Goa bela! —  
    surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi (1)!  
    
    E agora  
    olha a manhã de glória que desponta  
    num clarão:  
    É ela  
    — Ó Goa bela!  
    São os Gates floridos!  
    São os reflexos da Aurora  
    da tua redenção!  
    
     
     
    **Júlio Francisco 
    Adeodato Barreto escreveu este poema em Coimbra, a 25 de Janeiro de 1931. In 
    "O Livro da Vida", Nova Goa, 1940. 
     
    
       
    
     
    
    (1) 
    Glossário de termos de origem indiana:
    
     
    
    Gates= do 
    Konkani «Ghant» ou cordilheira que separa a zona litoral de Goa do planalto 
    de Decão.  
    Jangál = floresta  
    wág = tigre  
    ôllos = vôvio (?) ou rimas populares  
    morodos = murddi, ou terrenos cultivados nas encostas das colinas (A.B. 
    parece ter errado. Estes terrenos utilizavam-se quase exclusivamente para o 
    cultivo de legumes e cereais).  
    bate = arroz antes de ser descascado.  
    Súria = Sol  
    mogarins = flores brancas e cheirosas, muito procuradas pelas 
    senhoras indianas para adorno da cabeça e para grinaldas.  
    abolins = flores encarnadas, sem notável cheiro, e muito utilizadas 
    em Goa nos serviços religiosos, e para fabricar grinaldas.  
    Zuari = o maior rio ao sul de Goa.  
    Lakximi = deusa consorte de Vishnu, e fonte de beleza e de fortuna.
    
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